quinta-feira, 11 de junho de 2009

A Curvatura do Ser

A esta distância de mim, não me consigo reconhecer.
Deixei-me ficar e fui caminhando só de mim,
Corpo e movimento, sem o que me faz ser.
Abandonei-me sem vontade, deixei-me morrer
E renasci morto-vivo, pálida cópia envelhecida do verdadeiro que fui.
As faces familiares sorriem-me como se me reconhecessem,
Mas não é de mim que se lembram. Não pode ser de mim!
Nem eu sei de quem eles se estão a lembrar,
Nem tentando ver-me à distância... tão longe!

Ninguém diga que o mundo de cada um é curto!
Ninguém diga que a vida é curta!
Tantos caminhos e encruzilhadas dentro da cabeça de cada um!
Tanta vida e morte numa única vida de corpo!

Quantas vezes mais terei que morrer,
Parir-me de novo e errar uma vez mais,
Morrer outra e outra vez, temendo paradoxalmente a definitiva,
O final desta mãe de almas a que me chamam tu?

Não me quero! Cada novo é sempre pior que o que deixei
E acumulam-se no sotão de mim aqueles que não quis ser,
Que eram afinal tudo o que hoje queria que eu fosse, mas já não posso.

Estou hoje lúcido de mim e por isso não me reconheço.
Estou hoje sentado sobre a minha existência e sei que o que sinto
É apenas o peso do corpo sobre a minha alma que escorre para os glúteos.
Não estou triste, porque não consigo sentir...
Se sentisse quem o sentiria? Não tenho dono para o que possa sentir
E sem uma entidade que sinta, não há sensação.
Fecho os olhos e o mundo continua a não existir.
Acordo para mim e o mundo recomeça onde nunca o deixei.

Sente-se que hoje é. Hoje não é nada! Nada está hoje,
Nem amanhã, nem em tempo nenhum!
Como se pode estar no tempo? No tempo só se pode ser
E no espaço só se pode estar.
(Ridículo este que pensa e que crê que não crê em nada,
Tendo apenas o nada como certeza insegura!
Antes aquele que julgava crer e afinal só seguia,
Sentindo uma espécie de vazio cerebral, levado por ideias absurdas que outros tiveram.)

Morreu! Morreram todos! Vivo num cemitério de almas,
Rodeado por corpos vazios de gente, cheios de vazio,
Estúpidos como todos os humanos que se olham por dentro
E perdem a inocente estupidez animal.

Hoje escrevo isto apenas para desenterrar algum resto de mim,
Para ver um pedaço de carne apodrecida, nestes ossos que escrevem
E admirar as memórias que aquela pele cor de fantasma escreveu dentro de mim.

Jogos de bilhar e cerveja com os amigos, também eles mortos.
Cartas nos intervalos, rodeados por um nuvem de fumo alheia.
O traseiro duro de uma colega sobre a minha tesão adolescente.
Uma aula que ficará para a eternidade da minha alma finita.
Um parque verde onde parece ter ficado aquela criança que fui.
O primeiro amigo, o último melhor amigo e o seu regresso como amigo.
Os amigos eternos tatuados no meu ser, presentes mesmo quando não estou.
Dois corpos que se confundem no banco de trás de um carro,
Outros corpos que se confundem com os corpos que se confundiram,
Numa batida de carne de quem tem fome de sentir e ser sentido.
Quartos em cidades das memórias de infância
Descobrindo o corpo adulto de quem nem interessa conhecer o passado
E do presente basta o que nos envolve e acolhe o esperma.
Torneio de basquetebol onde me ficou o que nunca teve oportunidade de ser mais
E aquele de andebol, onde dei os primeiros passos na areia quente da vida.
As primeiras ressacas verdadeiras embalado pela água parada da piscina pública.
Os fins de tarde com os bonecos e o amigo que regressou,
Até a fome chamar por nós e o dia se cansar de ser quente.
O cheiro a verde dos lameiros do meu avô com os meus primos,
O cheiro doce do vinho no lagar do meu pai com as uvas a fugirem-me por entre os dedos os pés.
Uma noite ébria e absurda, em que só nós faziamos sentido com palavras desnecessárias.
Os matraquilhos com os bonecos a passar pelo milagre da multiplicação
No nascer da manhã depois da festa do verão à beira rio.
Os castelos que visitei e onde ficou sempre um bocado de mim.
Os corpos onde entrei e onde espalhei sempre algo que não sou.
Os amigos, sempre os amigos, que me têm mais do que eu a mim me tenho.

Custou encontrar-me. Tanto que não me encontrei.
Li-me, mas quem escreveu morreu.
Tudo pertenceu ao que estava fora. Entrou, alterou a configuração labiríntica das minhas sinapses,
Saiu... de mim, nada ficou! Só em mim ficou o que não haverá outra vez.
Vomitei-me todo e o que saiu não era eu. Até que ponto sou o que como?
Quanto sou daquilo que me faz ser?

Não sei onde ficar, nem se vou continuar deveras.
Não sei o que acabei, nem se fui eu a começá-lo.

Perdi a razão que me levou a isto e por isso, sem razão,
Terminarei mais uma tentativa falhada de me colar e me encontrar numa realidade visível,
De me explicar a quem não me pediu explicação nenhuma,
De escrever para olhos cegos uma verdade que nunca será lida.


11-06-2009

Savonlinna

João Bosco da Silva

1 comentário:

s0ninha d0s lim0es disse...

fiquei sem palavras........


um beijo nessa mente (que quer tudo menos beijos)

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