sábado, 28 de fevereiro de 2009

Relatividade

E se pudesse recomeçar, ou continuar onde desisti,
Ou onde perdi o que não tive forças para segurar,
Ou me cansei, ou me aborreci?
De nada valeria a pena, mesmo que isto que sou,
Tenha algum tamanho ou peso, que ninguém mede ou sente.

“Lembras-te”, pergunto por vezes estupidamente,
Como se estivesse a convocar uma memória comum.
Talvez se lembre da imagem que tenho dentro de mim,
Mas o antigo inquilino deixou-a quando se foi,
Não é minha, não me lembro e invoco-a falsamente hoje,
Como se o hoje fosse o prolongar desse ontem longínquo.

As minhas memórias de infância são tão falsas
E tão mal falsificadas que me vejo nelas,
Como uma terceira pessoa,
Sendo aquele que hoje as vê dentro,
Um fantasma num espaço somente interior,
Reflexo brumoso de um espaço perdido na realidade do tempo.

Detenho-me e encontro-me sempre como uma memória presente,
Nunca me encontrando no momento,
Como nunca consigo agarrar punhados de água.
O que sou, nunca sou o de agora,
Sou a recordação do que há instantes fui.
Tudo o resto é um espectro que flui
E deixa atrás a sua marca física, numa alma cerebral.

Tanto tenho errado, tanto tenho desejado, rejeitado e destruído,
Nunca sendo eu o responsável do momento!
Quanto do que eu criei foi o melhor que poderei
Alguma vez ter criado, só por ter morrido o único capaz de se igualar
Ou de se ultrapassar!

E com isto, sem o querer, mas provocando-o,
Fica aqui mais um registo de um defunto numa vida que perdura.


28-02-2009

Savonlinna

João Bosco da Silva

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

O Indefinível

A pele que me esconde, os olhos que me revelam,
Mas mentem na sua cor verde de quem se fala isto e aquilo,
Generalizando o irrepetível.
Os dedos que me acusam a presença
E se agarram a esta passagem como se fossem eu todo.
A boca que se busca em sabores alheios para se sentir
Mais acima no cego orgão que vê o que o mundo me mostra,
O que quero do mundo e o que do mundo não quero a todo custo.
Entre tudo, retalhos retalhados e repetidos,
Entre os eus que me povoam e os eus que sou nos olhos deles,
Não me encontro, nem me perco.
Existo como uma palavra escrita que a nada real corresponde,
Ou algo real que não é traduzível para nenhuma palavra.

(Vejo-os e invejo-os porque nunca me poderei ver assim.
Vejo-os e desprezo-os porque são tudo o que não há em mim.)

Os dias não deixam nenhum rasto,
Passam e logo se esquecem,
Como uma lesma seca, que não deixa no caminho percorrido
A sua marca viscosa.

A impressão nas minhas sinapses
É de pouca duração,
O que faz de mim um morto no amanhã,
Possuído por um outro nascido no acordar
Do meu corpo de sempre.

As mãos fascinam-me como se fossem outros seres,
Além de mim e da vontade.
Não fossem elas e não me fascinaria com o que elas fizeram,
Não fossem elas e eu nunca diria o que a voz não pode,
O que os olhos mentem e o que o corpo todo não sente,
Por estar limitado aos outros corpos.

Confesso-me inocente dos actos a que a vontade me obrigou,
Mas reconheço a culpa de todo o acto covarde de respeito à moral
Que os outros me tatuaram e não sei quem eles são por serem tantos
E nenhum em concreto.

Despeço-me de todos e de mim,
Esperando que o que amanhã me representar,
Seja merecedor da vida que não pediu.


27-02-2009

Savonlinna

João Bosco da Silva